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quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Adeus

Nós estávamos os dois ali, parados um diante do outro num silêncio que há muito tempo deixou de me incomodar.

            Eu encarava suas feições cautelosamente, sem que ele percebesse. Ele fitava algo distante pela janela, ou talvez algo dentro de si mesmo.

            Meus olhos teimavam em encher de lágrimas, que eu enxugava sem parar com as costas das mãos silenciosamente.

            Era, pelo menos pra mim, um silêncio triste. Nunca fora um silêncio de ‘mútua compreensão’. Não. Era um silêncio de duas pessoas que desistiram de tentar quebrá-lo.

            Ele ainda era o mesmo. Ou talvez a convivência não me permitiu perceber os sinais da velhice que desenhavam uma nova máscara sobre seu rosto. Mas ainda tinha os mesmos olhos profundos, aqueles olhos que tantas vezes encontraram os meus por breves momentos de amizade... Os mesmos olhos que sempre fugiram dos meus por medo...

            Suas mãos eram as mesmas, fortes, seguras, habilidosas... Mãos expressivas, mãos que falavam mais que a boca, que sempre entregaram o que vagava solto pela mente, enfurecendo-o, preocupando-o.

            Os cabelos brancos e os fios brancos em sua barba eram adagas do tempo que feriam sua destreza e sua segurança. Afugentando a postura da impassibilidade que eu conhecia e acolhendo uma nova imagem de solidão.

            Naquele momento não havia vestígios de reflexão, apesar do profundo silêncio. Eu tinha me armado até os dentes, me munido de armas como confiança e certeza e afastado qualquer um que pudesse se tornar vitima daquela batalha que eu esperava. A fúria que eu aguardava em silêncio, mas eu sabia que chegaria.

            Eu tinha me jogado naquela que seria nossa última partida de xadrez. Uma partida onde duelavam a minha mágoa e o seu medo.

            Aquele medo que sempre me machucou. Aquela culpa que eu sentia pesar em meus ombros todas as vezes que obriguei meu olhar a sustentar o dele. Todas as palavras que eu engolira por respeito e, até mesmo, por admiração.

            Não havia nada do que devesse me envergonhar. Eu nunca tinha feito nada de errado. Nunca tinha me esforçado em causar sua ira. Nunca tinha afrontado sua autoridade por causas erradas. E nunca, nunca tinha desejado a sua posição e o seu poder.

            As minhas chagas ardiam, minhas cicatrizes latejavam e eu parecia um soldado mutilado que voltava da guerra.

            Sua respiração estava serena, mas ele também tinha lágrimas nos olhos. Eu encarei o chão, como sempre fazia perto dele, dando-lhe a oportunidade de me olhar por algum tempo.

            Tempo... Quanto tempo tinha se passado? O tempo era um conceito filosófico pra nós dois. Um conceito psicológico... Como tantos outros que não existiam... Como diálogo.

            Diálogo que ele nem percebeu deixar morrer. Uma morte lenta e gradual. E nenhum das partes fez alguma coisa pra impedir. Talvez fosse mais minha culpa que dele, porque eu percebi o que estava acontecendo e ainda assim, deixei acontecer.

            Eu sempre esperava temerosa sua reação. Talvez fosse minha ansiedade, mas era a primeira vez que eu o via demorar tanto.

            Sua expressão era séria, a minha, imóvel. Não era uma afronta, não era uma guerra, não era uma despedida. Não havia na atmosfera da sala a tristeza profunda que sangrava meu coração.

            Eu sempre sentira tudo de uma vez e ele, uma por vez. Tentava entender, captar sua linha de raciocínio pra decifrar seu próximo movimento. A expectativa sempre me traía, me deixando nervosa.

            Ele sacudiu a cabeça vagarosamente e deu de ombros, respirando profundamente.

            Eu não entendi, ainda assim, assenti, também enchendo os pulmões.

            Uma ruptura quase indolor. Sem palavras, sem gestos, sem nada. Afinal, o que era distância? Era uma distância física, mas não era diferente da distância que por tantos anos nos separou...

            Ainda assim, eu esperava ao menos um abraço. Um abraço de despedida...

            Mas me levantei resoluta, indo em direção a porta, permitindo as lágrimas derramarem.

            – Então... Isso é um adeus? – ele sussurrou.

            – Adeus – repeti, atravessando a porta e saindo.

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