Se alguém se interessar em ouvir as músicas que eu menciono, essa é Cassandra e essa é Baretta
"Daqui a cinco anos você estará bem
próximo de ser a mesma pessoa que é hoje, exceto por duas coisas: os livros que
ler e as pessoas de quem se aproximar" Charles Jones
Eu
já estava há uma hora encarando a folha em branco na minha frente, com a caneta
na mão, clicando-a no barulho mais infernal que minha impaciência produzia... O
som do bloqueio...
Uma hora naquele dia. Era o terceiro dia na semana em que eu estava tentando
escrever alguma coisa e não saia nada. Um grande e assustador nada! Eu não conseguia escrever alguma
coisa nova nem se o destino da humanidade dependesse disso e só Deus sabia como
é que eu tinha conseguido escrever o capítulo novo que a Editora tinha me
pedido para incorporar no livro antes que fosse pra gráfica...
Aquela folha em branco era meu
Inferno Particular, algum dos muitos círculos de Dante, meu Bicho-Papão...
Parecia gritar pra mim naquele silêncio sufocante, me tragando e me afogando
naquela angústia... Às vezes, eu até avançava com a mão para ela, mas a caneta
parecia tão apavorada quanto eu e mal tocava o papel, se afastando o mais
depressa possível.
Não costumava ser assim tão
difícil... Escrever era como respirar pra mim... Há quanto tempo eu estava sem
aqueles borrões de tinta de caneta azuis pelas mãos e braços? Minhas canetas
ainda tinham carga! Meu coração calava sozinho suas angústias e não as deixava
mais transbordar em textos que eu já não conseguia mais me lembrar dos nomes...
Como eu fazia aquilo antes? Como eu
escrevia num fôlego só vinte páginas à mão, sem que meu braço me matasse de dor
e lágrimas? Como é que eu pude deixar aquele lampejo se apagar dessa forma?
A casa estava completamente vazia e
em silêncio, mas antes eu não precisava disso. Eu conseguia trabalhar com
barulho e interrupções sem perder o fio do pensamento e a trilha da inspiração.
Eu escutava “Cassandra”, do Thomas Bergersen no repetir uma, como se fosse um
carrossel que não parasse de girar, tentando me hipnotizar. Alguma coisa tinha
de funcionar... Eu precisava voltar a
funcionar!
Eu estava um pouco desmotivada, isso
era verdade. Tinha perdido aquele brilho alegre do começo, quando eu escrevia
só as coisas de que eu gostava e só pra mim, dividindo com os outros
inocentemente coo alguém que não espera nada de ninguém, mesmo que permitisse uma
pequena esperança de estar nisso mesmo a felicidade.
Talvez isso tivesse arruinado
tudo... Eu tinha me viciado nas outras pessoas e precisava delas e precisava
que se importassem tanto quanto eu... Eu não tinha nada que ter seguido esse
caminho! Era minha escrita, meu universo, meu viver... Por que eu tinha acreditado que outras pessoas deviam
ter alguma responsabilidade em tudo isso?
Nunca fiquei tão brava comigo! Eu me
despi de mim mesma e me afastei tanto de quem eu era que agora só conseguia me
ver quando forçava muito a minha vista já cansada...
Eu me levantei e caminhei pela casa
como um zumbi, sentindo como se o mundo ao meu redor fosse nublando e
amarelando e eu não ligasse ou não percebesse. E, de repente, minha música na
sala foi ficando distante e um som vindo do quarto chamou minha atenção, como
se eu não estivesse mais sozinha...
E não era como se eu nunca tivesse
escutado aquele som antes. Eu escutei e escutei muito. Ouvi tantas vezes quanto
era possível! Nunca deixei de ouvir!
Era Baretta...
Baretta,
tocando bem alto, no “repetir uma”, vindo do quarto, com a porta fechada...
Toquei a maçaneta, mas não abri a
porta. Eu não estava com medo do que estaria ali dentro, me esperando... Eu
estava apavorada! Escutei a música
acabando e recomeçando e nem sabia dizer quanto tempo eu estava ali ouvindo, se
era a primeira vez ou a décima que acontecia. Sei que fez com que a porta se
abrisse sozinha, sem me deixar decidir se estava pronta ou se ia sair correndo.
Não era o quarto que eu estava esperando
encontrar, mas por algum motivo isso não me surpreendeu. Era meu antigo quarto.
E eu estava lá dentro.
Claro que eu estava lá dentro, já que eu tinha acabado de abrir a porta e
entrar. Mas não era esse “eu” que eu estava falando. A pessoa que já estava lá
dentro, antes que eu entrasse, ouvindo Baretta
no “repetir uma” era eu. Algum eu não muito diferente, mas visivelmente
mais jovem, ainda sorridente e cheia de sonhos e não perdas e dores.
Eu estava sentada em minha cama, com
o caderno no colo e a caneta na mão, escrevendo freneticamente, enquanto “eu”
me encarava, ainda segurando a porta, sem conseguir me mover ou dizer nada. Só
o que meu cérebro conseguia processar daquele momento era que tudo estava
exatamente como eu me lembrava, até eu mesma... Não o eu da porta, o eu...
Escrevendo...
Ela
“eu” levantou os olhos e sorriu pra mim, como se soubesse que eu apareceria.
Largou a caneta e o caderno sobre a cama de uma maneira meio teatral demais,
mas eu costumava achar que era normal fazer tudo daquele jeito.
– E aí? Conseguiu? – ela (“eu”) me
perguntou e eu (“eu”) estranhei. Olhei para trás pra ver se tinha outra pessoa
com quem ela podia estar falando e ela riu.
– Consegui o quê? – perguntei, sem
ter certeza.
– Voltar a escrever – ela respondeu,
como se fosse muito óbvio ou como se tivéssemos acabado de ter aquela conversa.
– Ah... Não... – respondi, infeliz.
Ela balançou a cabeça, solidária. De alguma forma, ela me olhava com pena. Eu
estava com pena de mim! Isso era um
absurdo.
– Acontece – ela fez um gesto pra
que eu me sentasse com ela e eu me sentei.
– Não acontece com você – eu retruquei, amargurada.
– É o que todo mundo me diz e olha o
que aconteceu – ela gesticulou na minha direção e eu me senti ofendida e
envergonhada.
– Não é sua culpa. É minha – tentei
justificar.
– Isso é meio paradoxal – ela
brincou e eu fiz uma careta.
Nós ficamos em silêncio e aquele
jeito como ela me olhava me deixou bem desconfortável. Eu não gostava quando
sentiam pena de mim e odiava sentir pena de mim mesma. E daquela forma era um
pouco dos dois, o que dava à palavra “tormento” um conceito todo novo e
grotesco.
Ela não tinha nada que sentir pena
de mim! Ela ainda estava na faculdade e eu já tinha terminado (graças a Deus!)
há quatro anos, ela escrevia fanfics pro Nyah! e eu estava publicando um livro,
ela nunca sonharia em assistir ao the GazettE ai vivo e eu já tinha ido a dois
shows deles! Ela não conhecia o Pedro Bandeira, nem tinha passado uma tarde
inteira conversando com ele ou o encontrado na Bienal!
– O que você está escrevendo? –
perguntei e, por um estranho momento, parecia estar falando com outra pessoa.
– Estou trabalhando a estrutura de Guilty – ela respondeu orgulhosa e eu
sorri.
– Ah, isso é bom – senti algumas
lágrimas em meus olhos. Tinha tanto que ela não sabia, tantas coisas que eu não
podia lhe contar... Ela ainda não tinha terminado de escrever Guilty e nem sonhava com Storm, Darkness, Heaven ou End... Ela não sabia da PenDragon... Ela
não fazia ideia.
– Alguma dica? – ela arriscou e eu
gargalhei.
– Se eu te contasse, teria de
matá-la – brinquei.
– Se me matar, você não vai existir
– ela respondeu, petulante, mas nenhuma de nós riu. Era um assunto tão delicado
pra mim, que já tinha admitido e aceitado toda a depressão pela qual passei,
quanto mais pra ela que ainda trazia marcas tão recentes e em carne viva, que
ardiam e sufocavam. – Eu fiz bem? – ela não conteve a pergunta.
– Fez – eu assenti, contendo as
lágrimas o máximo que podia.
– Que bom! – ela pareceu realmente
aliviada e eu sabia que estava. Acho que era o que eu precisava ouvir pelo
menos alguém dizer... “Hey, que bom que você está aqui, viva”... – Tem feito
algo de bom? – eu ri, vendo-a (“me”) tentando manter a conversa. Eu sou péssima nisso!
– Algumas coisas – admiti, vagamente.
– Qual o melhor livro que você leu
recentemente? – eu gargalhei de seu entusiasmo. – Ainda ama “O Retrato de
Dorian Gray”? – me lembrei que eu devia estar relendo pela segunda vez naquela
época.
– É impossível deixar de amar –
respondi e ela pareceu contente. – Mas o melhor livro que eu li recentemente
foi a biografia do Stephen King.
– Sério? – ela pareceu surpresa e
cética e aquilo foi realmente hilário.
– Sim. Você também vai se apaixonar
por mais duas séries de livros, mas eu não vou entrar muito em detalhes.
Digamos apenas que uma delas tem livros tão grandes que fazem “A Ordem da
Fênix” parecer livro de criança – ela arregalou os olhos, curiosa.
– Parece exaustivo. Como foi que
encontrou isso?
– O Eduardo emprestou – ela sorriu e
naquele sorriso não precisava dizer mais nada e eu já sabia o que ela estava
pensando. – Na verdade, ele apresentou as duas séries!
– Todo mundo está bem? – ela
perguntou, indecisa. E eu entendia seu receio. Eu não saberia lhe dar más
notícias, mas não as tinha em tão grave escala.
– Estão bem – seu alívio doeu um
pouco em tudo que tive de esconder. Ela franziu o cenho.
– Você me diria se não estivessem? –
touché!
– Diria se tivesse que se preocupar
– ela aceitou melhor essa resposta.
– E as Gazegirls? Conseguiu juntar
todas? – seu entusiasmo foi um soco frio na boca do meu estômago.
– Sim. Vai ser um dia que você nunca
vai esquecer! – não era mentira e eu não me senti tão mal quanto achei que
sentiria.
Eu queria alertá-la de tanta coisa,
queria impedir e mudar tanta coisa... Mas eu conhecia o gênero pelo qual me
arriscava bem demais pra fazer uma coisa tão burra, mesmo que fosse tentador...
Não era para isso que eu estava lá! Eu não trazia
respostas; eu as estava buscando.
– O que você fez hoje? – perguntei e
ela se surpreendeu.
– Eu? Nada de interessante... – eu
dei risada.
– Só me conte... Quero me lembrar...
– Fui pra faculdade, mostrei o
esquema de Guilty pra Ana, a gente
ficou na sala dos computadores, assisti “10 Things I Hate About You” e peguei o
ônibus pra casa. Nada de interessante – ela resumiu, me fazendo rir de novo.
– E o que te deu vontade de
escrever?
– Está perguntando sobre o “segredo”
pra pessoa errada – ela respondeu com aquela petulância que eu temia ainda usar
muito.
– Não. Não um “segredo”. O que te
fez sentar e escrever?
– Guilty ué... Eu quero que esteja pronta o quando antes – eu sorri,
concordando com sua lógica.
Às vezes, mesmo repetindo para mim
mesma sempre, eu me esquecia que meu “segredo” para escrever era escrever...
– Posso te fazer uma última
pergunta? – ela me acordou de meu devaneio e eu não sabia como ela sabia que
essa era a última pergunta que ela poderia me fazer, mas eu sabia que estava
certa.
– Pode – respondi, com muito medo de ouvir o que ela queria
tanto saber de mim... Eu era o fantasma do Natal Futuro do Scrooge e lamentava
muito que não estivesse ali para lhe dar esperanças de que podia mudar... Mesmo
com as coisas ruins que tinham acontecido, eu não podia arriscar perder as
coisas boas que eu tinha...
Ela parecia ter o mesmo receio que
eu porque, por mais que soubesse que nosso tempo estava acabando, seu silêncio
se estendeu muito até que ela finalmente tomou coragem ou conseguiu resumir
tudo o que queria saber numa pergunta só.
– Nós conseguimos? – eu olhei pra
ela, com todos aqueles sonhos e esperanças, aquela menina que mal tinha asas ou
pétalas, cheia de medo do futuro de onde eu vinha.
Peguei sua mão e tentei sorrir um
sorriso que eu não dava a mim mesma há muitos
anos...
– A verdade? – perguntei, apertando
sua mão na minha e ela hesitou, antes de fazer que sim. – Conseguimos!
Eu me levantei da cama e não me
permiti olhar pra trás, quando abri a porta e saí do quarto, recitando pra mim
mesma uma frase que eu não me lembrava mais de porque tinha algum significado
antes, mas que agora cabia bem demais:
“Se olhar pra trás, estou
perdida”...
Voltei a me sentar diante do caderno
e da caneta que eu tinha abandonado e parecia que fazia anos... Fazia? Eu não
sabia dizer...
Não importava...
Eu tinha finalmente voltado a
escrever!
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